– Perspectiva cultural do desenvolvimento



     O Centro de Estudos Regionais - C.E.R., por abreviatura - foi, em tempos, convidado a participar num debate centrado sobre os problemas relacionados com o desenvol­vimento económico, social e cultural da nossa área geográfica.
    A criação do Centro de Estudos Regionais, em 1978, visava responder à carên­cia de uma instituição que se interessasse pelo estudo, valorização e defesa dos valores culturais, humanos e naturais do Alto Minho. Es­tava então na fase de arran­que a onda associati­vista, que tão larga amplitude viria a alcançar nos dez anos seguintes. O Centro de Estudos Regionais desem­pen­hou um importante papel no desenvolvi­mento cultural do distrito e particularmente do concelho de Viana do Castelo.
   A sua acção tem-se estendido a vários sectores. Coube-lhe um papel importante na criação do Instituto Politéc­nico e das várias Escolas do Ensino Superior no Alto Minho. Desenvolveu intensa ac­tividade na defesa dos valores ambientais, designada­mente da orla costeira e das águas dos rios, e contribuiu significativamente para evitar a construção da central térmica a carvão, no distrito de Viana do Castelo.
   Muitas das suas acções realizaram-se em colabora­ção com outras entidades - Governo Civil, Câmaras Municipais, Região de Turismo do Alto Minho, escolas, associações culturais e outras - inaugurando uma era de maior cooperação institucional na região, indepen­dentemente das conotações políticas ou ideológi­cas, que tanto haviam servido para dividir pessoas e institui­ções interes­sadas na pros­secução dos mesmos objec­tivos.
Múltiplas escavações arqueológicas foram realizadas (Facha, Calheiros, Beiral do Lima, Lanheses, S. Francisco do Monte, Lobelhe, Gondomil), e um importante lavor foi desenvolvido no estudo de figuras e factos, cuja lição ainda é proveitosa no presente e no futuro.
  Embora de âmbito regional, o CER nunca pôs de lado as relações e actividades de intercâmbio com outras regiões do país e com a Galiza.
Os numerosos estudos realizados pelos associados serviram muitas vezes de ponto de apoio para a defesa dos valores regionais, desde os trabalhos arqueo­lógicos, históricos, etnográficos, antropológicos, geográficos e ecológicos, em grande parte divulgados através da secção editorial, em que encontramos uma das melhores expres­sões do Centro de Estudos Regionais, concretizada no lançamento de edições próprias ou em colaboração com outras instituições, na publicação da revista ESTUDOS REGIONAIS e no apoio ao ARQUIVO DO ALTO MINHO.
 É em nome do saber nascido destas e de outras experiências, que se apresenta esta breve reflexão.
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     1. A cultura não é dissociável das outras actividades humanas... A cultura é em termos gerais aquilo que caracteriza o homem como tal, que o torna humano, distinguin­do-o no meio da natureza. O desenvol­vimento, repete-se muitas vezes, sem atingir o verdadeiro alcance da afirmação, não significa apenas progres­so material, porque implica o crescimento harmonioso do homem em todas as suas dimensões, sem esquecer a liber­dade/responsabili­dade e creativida­de/consciência de si e do mundo. A revolução industrial já nos ensinou como é per­nicioso um crescimento conseguido à custa da submissão e da ignorân­cia.
     Mas se o homem deve ter uma preparação cultural que o ajude a tomar consciência, a assumir e a perspectivar a sua acção no mundo, torna-se claro que a cultura não é uma realidade que se possa separar da restante actividade humana, porque toda a actividade deve ser cultural. Não é fácil encontrar um lugar para certas formas decaden­tistas de cultura que a encaram como um práticas de coisas apenas acessíveis a alguns raros inicia­dos. Dizer isto não significa cair na concepção oposta, segundo a qual a cultura não devia ir além das manifestações popularu­chas ao alcance de todos. Há diversos níveis de cultura, cuja elevação é de promover sucessiva e gradualmente; ao mais alto nível situam-se os que fazem expressamente da cultura a sua vocação e a sua missão, e a sua intervenção é exigida pela neces­sidade de estimular a criação e de renovar.
    Observa-se por todo o lado - e isso é muito claro em orçamentos e planos de actividades - uma delimitação acentuada entre a cultura e tudo o mais, ou seja, a economia, a adminis­tra­ção, as obras públicas. A cultura lá fica para algumas festas, para os subsídios destinados a manter tranquilos alguns intelectuais incómodos. Por vezes até se destingue a cultura da instrução, que é só nisso que se pensa quando se diz «educação» e se refere o mundo escolare, talvez porque algumas vezes a escola não forma homens mas apenas seres capazes de ler as instruçoes que os levam a enquadrar-se no mundo das máquinas com que se faz o crescimento industrial. Talvez por isso mesmo haja autarquias que se sentem tentadas a destinar ao desporto todas ou quase todas as suas verbas referidas ao cultura, porque o desporto ajuda ao crescimento físico, à formação de seres robustos para o trabalho - e fica-se por aí, sem explorar e potenciar a sua vocação pedagógica. `As vezes ainda há alguma atenção para as exposições e amostras de artesanato ou certas realizações próximas, não pelo seu valor cultural (de que tantas vezes e por isso mesmo os seus agentes quase se envergo­nham), mas porque constituem modalidades económicas alternativas, funcionam como meio de atracção de foras­teiros, e por isso, mais uma vez se apresentam como simples fonte de proventos económi­cos.
     Se a cultura é aquilo que torna o homem mais consciente de si, que o torna mais aberto e mais humano, ela exige um espaço de liberdade e creatividade interior, do indivíduo e das comunidades, e ao mesmo tempo o seu relacionamento com o exterior, do indivíduo e das comunidades. Uma cultura fechada corre o risco de se asfixiar e mumificar, perdendo a vida e a capacidade de se renovar. Uma cultura importada, feita exclusiva ou predominantemente da introdução e imitação de manifes­tações concebidas no exterior nunca encontra­rá terreno propício a um florescimento adequado. A acção cultural das instituições deve pois orientar-se nestes dois rumos: desenvolvimento dos valores locais, enriqueci­mento através dos contactos em múltiplas direcções estabelecidos com o exterior, estímulo da creatividade para encontrar novas formas e conteúdos.

     2. Destas breves considerações queríamos tirar algumas conclu­sões:

   2.1. É necessário não apenas dar uma grande ou maior atenção dada à cultura no planeamento administrativo, mas realizar um planeamen­to e uma acção verdadeiramente cultural.
  2.2. É necessário reconhecer o papel da cultura, simples­men­te «cultura», sem necessidade de recorrer a subterfúgios, de falar de desenvolvimento «socio-cultural» ou «económico-sócio-cultural», porque tudo o que é económico só é humano se for cultural, e tudo o que é social so o é e só é humano porque é cultural.
   2.3. É necessário apoiar-se nas instituições locais, para o desenvolvimento de uma verdadeira acção cultural.  O desenvol­vimen­to cultural de um município do interior nunca se pode fazer apenas com as orquestras e o grupos de teatro, ou com os engenheiros e doutores idos de Lisboa e do Porto, mas tem de passar por muitas outras cambiantes. Sirva-nos de exemplo o que não raramente acontece nas escolas, onde muitas vezes se falha por carência de uma verdadeira inserção nas realidades locais: os programas são elaborados na capital, os livros são feitos longe, os professores vem de fora e muitas vezes não tem o mínimo conhecimento das realidades vivenciais dos seus alunos. Como poderão ajudá-los a compreender, a desenvolver e a valori­zar as suas capacidades individuais e comunitárias, se a elas são alheios? A reforma do ensino, processo que nunca mais se poderá considerar terminado, mas sempre em curso, há-de, no futuro, aproximar mais os alunos das suas raízes cultu­rais.
    É através do apoio às instituições que nascem e se desen­volvem localmente que se pode partir para uma acção mais enraizada e fecunda. Terá porém de estar atento o olhar dos responsáveis, porque nos últimos tempos a indiscriminada concessão de subsí­dios ou a facilidade de acesso a alguns fundos tem permitido o apareci­mento de grupos de oportunistas que se arvoram em mentores e líderes de pretensas instituições cultu­rais, às vezes recorrendo a nomes pretensiosos, capazes de sugerir competências não existentes, com a mira do lucro ou do prestígio fácil, em detrimento de associações honestas e generosas e, por vezes até, em prejuízo da nossa boa imagem mesmo no estrangeiro. Haverá que distinguir o âmbito espacial das associações, as áreas em que poderão exercer uma acção profícua com verdadeira competência.
   Propositadamente se deixa para outra altura a abordagem de uma nova forma de encarar não direi já a cultura mas o modo de a difundir, adoptando os esquemas empresariais da vida moder­na...

   3. Uma atenção muito especial merecem os bens materiais que testemunham de um modo muito privilegiado a nossa idiossincracia cultural. Sem querer entrar na discussão sobre a capacidade de o Alto-Minho poder constituir uma unidade administrativa ou económi­ca, creio estar fora de dúvidas que o Alto Minho possui uma in­dividualidade cultural que lhe é própria e que se cimentou ao longo de séculos, dando como resultado uma das culturas regionais mais características do norte de Portu­gal. Os vianen­ses, ou, para não termos dúvidas sobre a expressão, os alto minhotos sentir-se-iam felizes quando pudessem ver os testemu­nhos materiais da sua cultura ancestral salvaguadados num Instituto ou Museu Etnográfico, que fosse não apenas um lugar de recolha e exposição, mas um verdadeiro centro de dinamização cultural.

   4. Se o debruçar-se mais a fundo sobre os valores cultu­rais, ainda não é função de um Instituto Politécnico, mais voltado para a formação técnica de profissionais destinados a operar nos sectores económicos, esperemos que a futura Universi­dade, que nascerá da sua transformação e enriquecimento, e constituirá a sua coroa, dê um especial destaque à dimensão cultural do povo do Alto Minho.

Teatro popular

A «TURQUIA» DE CRASTO

Na concha de uma vertente de colina, igual a tantas que recortavam a paisagem da Grécia, terá nascido, no calor das solenidades religiosas em honra de Dionísio, uma forma de espectáculo que logo atingiria o cume no século V a. C. Inicialmente era apenas um coro que entoava um ditirambo, cantando a vida e os feitos da divindade. Depois juntou-se-lhe um solista ou corifeu para dar, com a narração, maior variedade ao espectáculo. O grande tragediógrafo Esquilo acrescentou mais um interlocutor, e Sófocles introduziria mais um personagem, atingindo-se desse modo a forma áurea do drama. À tragédia, forma teatral por excelência, seguir-se-ia a comédia, de que Aristófanes foi o primeiro grande mestre.
Alguns séculos depois, o teatro descera já muito abaixo do antigo nível, e assim, nos primeiros séculos do cristianismo, os espectáculos teatrais haviam-se tornado em manifestações desprovidas de qualidade e cheias de mau gosto. Por esse motivo, e porque nas representações teatrais se glosavam os temas pagãos, não admira que os primeiros escritores cristãos se lhes mostrassem decla­radamente adversos. Tertuliano, no De Spectaculis, classifica essas manifes­tações de invenção ignóbil e diabólica. O teatro pagão viria a ser abandonado.
A medida que se difundia, o cristianismo foi também sentindo a necessidade das manifestações exteriores. No período bizantino, a essa necessidade corresponde a pompa da liturgia e o brilho dos cortejos religiosos.
Em plena Idade Média, século XI, os sacerdotes para tornar mais acessíveis aos fiéis os textos bíblicos, sobretudo em solenidades como a Páscoa e a Paixão, apresentam-nos em forma de diálogo na boca de vários leitores, em correspondência aos textos da Escritura. O passo seguinte consistirá em acrescentar ao diálogo a acção. Teremos assim os primeiros «mistérios». Quando no texto bíblico não existe o diálogo, reinventa-se este, de modo a corresponder a uma reconstituição dos acontecimentos narrados na Sagrada Escritura. Uma das mais antigas peças deste género é um Mistério da Natividade onde intervêm figuras do Antigo e do Novo Testa­mento, como Balaão e a sua alimária, Daniel e Aarão, ou Maria e o Anjo, mas onde também comparece Santo Agostinho para disputar com uma figura alegórica, a Sinagoga, sobre a concepção virginal de Maria.
As formas mais conhecidas do teatro medieval são os «mistérios», os «milagres» e os «autos». Nesses espectáculos, realizados em geral ao ar livre, na frente das catedrais, a Igreja tem um meio excelência de torrar vivos os ensinamentos religiosos e de mostrar como eles se podem misturar na vida de cada crente.
Não são apenas, e muitas vezes, nem sequer as palavras, mas a acção, os gestos, os adereços que tornam o espectáculo empolgante e incisivo. Milhares de espectadores, crianças, homens mulheres, riem, vibram e choram de emoção ou exultam de alegria.
Nos «mistérios» representam-se cenas tiradas do Antigo Testa­mento ou da vida de Cristo, embora se lhes junte, com frequência, a intervenção dos santos, enxertando-se mesmo episódios da sua vida.
Nos «milagres», o tema anda à volta dos acontecimentos mais extraordinários da vida dos santos, ou devidos à sua intercessão, após a morte, ou de histórias maravilhosas ligadas às relíquias e aos lugares santos, divulga­das pelos cruzados ou contadas pelos trovadores. Nestas peças teatrais, mais livres e estimulantes da imaginação, abundam o misticismo e a comicidade, que as torna muito apreciadas do público.
No século XV a Península Ibérica viu nascer uma nova forma de teatro, os «autos». Nos «autos» a parte fundamental do enredo não é já a Bíblia nem o facto miraculoso mas a vida quotidiana das pessoas, embora se continue a misturar o profano com o religioso. O teatro transforma-se em instrumento de crítica social ou de polémica contra os erros doutrinais, em defesa da fé.
Será neste género, os «autos», que devemos incluir as peças de teatro popular, que surgiram no ocidente peninsular no século XV e XVI, tendo como pano de fundo a cruzada contra os infiéis, mouros e turcos, se não também já a polémica contra os protestantes. É natural que essas peças não tenham chegado até nós na pureza da sua estrutura de origem, mas tenham sofrido algumas modificações através dos séculos. Estão nesse grupo diversas "mouriscas" de que nos falam crónicas do passado, assim como algumas peças, entre elas, na Ribeira Lima, o «Auto de Mouros e Cristãos», na Sainza, arredores de Ginzo de Lima, os «Turcos», de Crasto, o «Auto de Santo António», de Subportela, o «Auto da Floripes», das Neves. São peças de teatro popular de romaria, isto é, destinadas a ser represen­tadas na frente ou no meio do público, diante da capela ou no terreiro da festa. Nelas se defende a necessidade de lutar sem trégua, contra os infiéis, até à vitória final. Mas esta vitória só é completa se culminar na conversão e no baptismo dos incrédulos. Uma vez convertidos, todos entoam os louvores de Deus, da Virgem ou do Santo Orago, em honra de quem se realiza a festa. É o Te Deum ou Acção de Graças, onde já poderá achar-se algum eco da polémica com os protestantes sobre o culto dos santos, no fim do séc. XV e princípio do século XVI.


A “TURQUIA”

No terreiro da capela do Senhor da Cruz da Pedra, em Crasto, lugar pertencente à freguesia de São João da Ribeira, realiza-se todos os anos, no segundo domingo de Agosto, uma festa de cujo programa consta, de anos a anos, a repre­sentação da «Turquia», peça de teatro popular de terreiro, que faz vibrar de entusiasmo os locais e os forasteiros.
Quem não puder assistir a alguma dessas representações e quiser conhe­cer os «Turcos» deve socorrer-se de algumas das edições impressas que felizmente existem. Nada consegue, no entanto, suprir a sua representação ao ar livre. Os «Turcos» são, em verdade, na mais clássica e moderna acepção do termo, uma genuína peça de teatro, em que o movimento dos personagens e a mímica têm igual se não maior valor que a palavra oralmente pronunciada. Os figurantes nascem dos caminhos da aldeia, surgem por entre a multidão, que se arru­ma com dificuldade e alvoroço, e representam a «comédia» no mesmo chão em que se movem os outros mortais.
Não se trata de uma obra erudita, mas de uma peça de teatro popular, forjada, é certo, por qualquer autor dos séculos passados, mas que o povo acolheu e perfilhou como sua, acatando o anonimato do seu escrevinhador ou esquecendo-lhe o nome.

Outras peças há de entrecho similar, sendo possível que uma boa análise filológica leve a concluir que se trata de uma só, recortada, acrescida ou modi­ficada no andar dos tempos, conforme o gosto, a criatividade e mesmo os equívocos dos grupos étnicos.
Entre as peças de teatro popular classifica-se na série das peças de terreiro, destinadas a uma representação ao ar livre, por ocasião de um acontecimento público, como a visita de um personagem ilustre, uma procissão ou uma romaria. Neste caso trata-se de uma romaria. Dois grupos, um fiel e outro inimigo, acabaram por se confrontar, ven­cendo o primeiro e terminando por converter-se o segundo, avolu­mando assim a multidão dos que prestam homenagem ao santo orago, neste caso o próprio Jesus Cristo, invocado sob a curiosa designação de Senhor da Cruz da Pedra.
Para os estudiosos o entendimento desta peça de teatro ganharia muito com o conhecimento da época e, se não do lugar e do autor, do ambiente espiritual em que teve a sua origem.
O enredo dos «Turcos» é bastante simples. À chegada ao terreiro, dá-se a cena preliminar das emboscadas, em que os turcos aprisionam a bagagem dos cristãos, indo depois fortificar-se num castelo. Ouve-se o canto de guerra dos cristãos reunidos à volta da bandeira portu­guesa.
Segue-se a preparação da guerra, com as exortações dirigidos ora pelo rei cristão, ora pelo rei turco, às suas hostes. De ambos os lados se enviam espias em busca de informações sobre o inimigo.
Vem depois o episódio das embaixadas. O rei cristão envia ao turco o seu embaixador, exigindo-lhe, em ultimato, a conversão à fé cristã. O turco recusa a proposta e, por sua vez, manda o seu representante ao monarca cristão para que este e os seus se rendam ao culto de Mafoma.
Então assistimos ao encontro dos espias. O cristão para obter informações finge-se despeitado com os seus correligionários, consegue que o turco lhe dê comida e, num interlúdio cómico, retarda o regresso do infiel, embriagando-o, até que chegam os cristãos em pé de guerra e o matam, dando-lhe um tiro.
Com a morte do espia, iniciam-se, ritmadas ao som do tambor, as batalhas entre turcos e cristãos, que gradualmente vão aprisionando os seus inimigos.
E a «Turquia» encerra com o baptismo geral: enquanto um ere­mita faz uma súplica pela vitória sobre os infiéis, aparece um anjo a exortá-los à conversão e eles acabam por se declarar dispostos a abraçar a fé cristã e pedir o baptismo, que o eremita lhes ministra. Segue-se o cortejo final em que todos se reúnem para fazer romaria à volta da ermida e entoar um cântico de louvor e acção de graças.




Onde terá nascido a «Turquia»? Não é possível dizê-lo com segurança, mas não foi no concelho de Ponte de Lima, e muito menos no lugar de Crasto, da freguesia de S. João da Ribeira, embora devamos aos seus moradores a conservação até ao presente deste precioso espécime de teatro popular de outras eras. Cláudio Basto recolheu a tradição local de que fora trazida para ali por um limiano amante das letras, Lourenço Vieira da Rocha. Um dos manuscritos usado na representação de 1965 era encabeçado por este título:

DRAMA DAS GRANDES GUERRAS
ENTRE TURCOS E CRISTÃOS
NO CASTELO DE PORTO DE MÓS

Se a referência topográfica, curiosamente conservada, não indica a localidade onde se escreveu o auto, designa por certo o cenário ideal que servia pelo menos de fundo imaginário ao seu autor, que não seria de localidade muito distante e portanto do centro do país, nas vizinhanças da capital, onde se situava a corte real portuguesa.
Em que época exacta terá sido escrita? A maior parte dos estu­diosos que à «Turquia» se referem contenta-se em dizer que se trata de uma reminiscência do teatro medieval.

Como razões para apodar de medieval esta peça de teatro podem aduzir-se o emprego da medida velha ou seja dos versos de redondi­lha maior, abandonada por Sá de Miranda e António Ferreira; e o bilinguismo, em voga nos fins do séc. XV e inícios do séc. XVI, como pode concluir-se da sua larga utilização por Gil Vicente. O inimigo era de uma nação estranha, falava uma língua diferente, qualquer ela fosse, embora se recorresse ao castelhano, para que, devido às semelhanças com o português, a assistência percebesse o mínimo das falas, estropiadas sem dúvida pelos personagens, o que contribuía para aumentar o ridículo de que se desejava rodear o inimigo, e introduzir-lhe momentos de comicidade. Mas há um elemento fundamental para a datação genérica desta obra: é a matéria medieval, extraída da gesta carolíngia. As referências aos temas cavaleirescos ainda afloram nos autos de Gil Vicente, mas são postos definitivamente de lado após a introdução da literatura e do teatro clássico com Sá de Miranda e António Ferreira, no fim da terceira década do século XVI. Apenas na primeira metade do século passado, com o romantismo, se reavivou, ainda que efemeramente, a lembrança dessa temática. Talvez por isso, o Dr. Feliciano Guimarães atribuiu a origem do «Turquia» ao século passado, quando escreveu que «A letra desses versos cheira à literatura dos meados do séc. XIX». E, referindo-se ao mencionado possível introdutor do auto em Crasto, afirmara antes que «A ele, sem dúvida, pertencem de lavra própria, os versos de início e a parte final, com o ermitão a implorar o auxí­lio do Senhor da Cruz da Pedra e o baptismo dos turcos».
Ora esta datação «pelo cheiro» de uma peça de teatro ou em geral de literatura popular não parece a mais correcta. Certo é que por vezes as alterações sofridas no correr dos tempos dificultam a exegese dos textos e por conseguinte a fixação de uma cronologia. A atribuição aos meados do século passado apenas se explica, aliás, se a referirmos ao revivalismo medieval da literatura romântica e isso implicaria a necessidade de lhe encontrar uma paradigma ante­rior alguns séculos ao auto de Crasto, o que, tratando-se de uma peça de literatura popular, seria o mesmo que negar primeiro e depois afirmar de novo a sua origem.

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A «Turquia» é uma peça de teatro tardo-medieval, mais concre­tamente dos fins do séc. XV ou inícios do século XVI. Podemos considerá-la como a última filha das gestas carolíngias. O pano de fundo são as lutas entre mouros e cristãos. Mas aqui os mouros, como adoradores de Mafoma, aparecem confundidos com os turcos otomanos que então flagelavam o leste do Mediterrâneo. A terra dos infiéis é designada como a «Turquia», mas o sultão diz que já foi senhor de Alexandria e o seu mensageiro apresenta-se como embaixador da África.
Esta confusão deve-se primeiramente à falta de notícias claras sobre uns e outros por parte de um autor popular numa época em que havia escassos meios de informação. Depois porque uns e outros ocupavam sucessivamente o lugar do inimigo. D. Francisco de Almeida que serviu com denodo os Reis Católicos de Espanha nas guerras de Granada, contra os mouros, partiu em 1505 para a Índia, perante a ameaça dos turcos enviados pelo sultão mameluco do Egipto, que preparava uma numerosa esquadra para expulsar os Portugueses do Oceano Índico, e acabou por o vencer em Diu, em 2 de Fevereiro de 1509, numa das maiores batalhas navais da história.
Neste auto rejeita-se de todo qualquer possibilidade de acordo com os infiéis. Também em 1504 o sultão enviara ao Papa e por intermédio do Papa, ao rei de Portugal uma mensagem, de que era portador Fra Mauro, prior do convento do Monte Sinai, segundo a qual ameaçava destruir o Santo Sepulcro e converter, pela força, ao islamismo os cristãos resi­dentes nos seus domínios e, além disso, assolar com as suas esquadras as costas do norte do Mediter­râneo, se o Sumo Pontífice não proibisse o D. Manuel de mandar as suas naus à Índia.
A resposta foi o já referido envio de D. Fran­cisco de Almeida para concretizar um plano de domínio e defesa da mesma Índia. Esta posição irredutível perante os infiéis aparece também na «Turquia» de Crasto: ou eles se convertem à «lei da graça» e acatam o domínio do rei da Lusitânia, ou serão submetidos pela força das armas, à imagem do que sucedia já na gesta carolíngia.
Os infiéis recusam a submissão, tornando a guerra inevitável, mas acabam por ser derrotados. A derrota, porém, não implica a extinção ou, seja, a morte. Este fim não era condigno para uma peça de teatro representada numa ocasião festiva, para mais numa romaria. Por isso é que em autos similares, quando morre o grosso dos inimigos, estes acabam por ser ressuscitados, normalmente pela intervenção de um anjo. No auto de Crasto apenas morreram os figurantes da cena inicial e o espia turco, incidentes que, de todos, pela falta de lógica no seu enquadramento, parecem reunir as maiores probabilidades de terem sido interpolados. Mas esses são no final simplesmente «esque­cidos». Na maioria, os inimigos, incluindo o próprio Sultão, são feitos prisioneiros. A derrota implicava a total submissão ao vencedor e portanto a conversão às suas ideias, à sua fé religiosa. Por isso os mouros ou turcos aprisionados recebem o Baptismo.
Esta derradeira cena mais uma vez nos traz à ideia as novelas medievais e, concretamente, a gesta carolíngia. Na Chanson de Roland, os mouros derrotados na tremenda pugna de Saragoça são também forçados ao Baptismo. Textualmente, «o rei crê em Deus, quer fazer o que é seu serviço; assim, os bispos benzem as águas e levam os pagãos às pias baptismais; se algum resiste, Carlos manda-o enfor­car, queimar ou passar à espada». Nesta passagem, a Chanson de Roland serviu de paradigma à última cena da «Turquia» e de outras peças de teatro popular: o baptismo geral é o remate mais adequado para a função! Não nos achamos, todavia, perante uma simples reso­lução de um drama teatral, mas perante a única solução admissível pela mentalidade medieval. A finalidade - levar os pagãos à salvação - justificava os meios: a administração mesmo violenta do baptismo; e o poder do sacramento, actuando «ex opere operato», era tal que conseguiria transformar o interior dos que, mesmo contrariados, o recebiam!
Não é muito crível que este episódio do baptismo geral rematasse uma peça de teatro escrita em meados do século XIX, como preten­dia Feliciano Guimarães. Nada mais oposto às ideias de tolerância e liberdade religiosa então divulgados. Pelo contrário, houve um momento na história nacional em que o problema da conversão e baptismo dos não cristãos - precisamente dos judeus e, só em escala muito reduzida, dos mouros - foi levantado de uma forma veemente. Tal momento situa-se no reinado de D. Manuel. Expulsos de Espanha pelos reis católicos Fernando e Isabel, a pretexto de lhes infligir o castigo de uma paródia da paixão de Cristo em que alguns sacrificaram um rapaz cristão, muitos judeus acolheram-se a Portugal, onde D. João II lhes permitiu a estadia por oito meses, a troco do pagamento de uma taxa. Passado esse prazo, tornar-se-iam escravos. Muitos continuaram em Portugal e D. Manuel concedeu-lhes inicialmente a alforria, mas interessado no casamento com a infanta Isabel de Castela, e, porque essa era uma condição, publicou, em 1496, um decreto de expulsão de todos os judeus e mouros que não recebessem o baptismo. Verificando, porém, as desastrosas con­sequências económicas que adviriam para o país, empregou todos os meios para dificultar a saída aos judeus e tomou outras medidas, como a de lhes subtrair os filhos, para os educar na religião cristã, e em 1497, acabando por levar os vinte mil que, não se querendo converter, se reuniram em Lisboa para sair do país, a serem baptizados à força. Verdade é que lhes deu um prazo de vinte anos, depois prorrogado por mais dezasseis, até 1533, durante o qual não se inquiriria das suas crenças. Importantes membros da hierarquia eclesiástica, entre eles D. Fernando Coutinho e D. Jerónimo Osório, levantaram a sua voz em protesto contra esta conversão falsa e violenta.
     E o povo, incitado por monges fanáticos, mantinha-se no mesmo ódio aos judeus que levou ao massacre de 1506, em Lisboa. Em 1531, o rei D. João III iniciou as diligências para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, o que, para além de toda a problemática relacionada com o nefando tribunal, supõe, logo à partida, o reconhecimento de que a conversão forçada de trinta e quatro anos antes fora simplesmente um fracasso. A partir desta data, pelo menos no séc. XVI, deixa de se compreen­der que numa peça de teatro para ser levada a terreiro se faça a apologia do baptismo instantâneo dos infiéis. Muito natural é, pelo contrário, que a facção partidária do baptismo geral de 1497 pro­curasse defender entre o povo o valor do acto, usando os meios ao alcance, neste caso o teatro, passatempo que gozava então dos maio­res favores do público.